sábado, 14 de junho de 2014

Diário de Uerla Cardoso


Amorfo
 
Um dia perde-se a ampulheta e a areia cessa,   
Perde-se a estribeira das linhas do mundo, 
e passa toda a vontade por baixo da porta, 
por entre as frestas da lembrança,
por entre o corpo aqui. 

Não te rendas aos pés do tempo, "Zunido".
Quando balançarem tua corda, caia nos ventos e furacões do espaço, 
dance corroendo a tempestade com tuas mão que descobrem mundos.
Tu és sozinho "Zunido", nasceste em nuvens, 
teus ouvidos são leves e repleto das dores do mundo.
Tu és mundo e tu é breve como as noites mais cansadas.
Tua solidão é a mais repleta de todas.
De teus pés, os primeiros passos são belos.

O tempo desgasta as coisas como cupim
A madeira deste corpo torna em pó e esvai
"Esvou" por aqui mesmo ao ouvir-te, "Zunido".
De teu som descubro-me o cheiro frágil que tem a vida,
e as cores, e as sombras de sobras dos sapatos alheios.

As linhas do mapa separam unindo as nações.
Relembro do bicho mapa que quase rendeu-me um dedo,
o medo de um aleijo tirou-me a paz por um tempo.
Só o escuro assusta as vistas frágeis e lacrimosas de agora
ainda não posso doar-me ao apagar das luzes
Quero ver limpo, mas essa retina branca me seduz um pouco.

Caminhar por aqui é esquecer de amanhã.
Não lembrava dos sonhos de outrora,
mas hoje quis abrir-me os ouvidos
para ver o longínquo dos que cercam.

Vai "zunido",
navegue em deriva por sobre as raízes de copa das árvores
silencia-te quando ouvir passos,
pois quando descobrirem o que te dói,
coçarão a chaga até esmagar-te o dentro.

Doar-se sem retorno, 
atordoar-se no adorno das retilíneas rotas,
naufragar-se ao sabor do vento, amorfo.

A chegada é sempre estranha,
corpos formigando com feridas e um olho aberto.
Não posso embarcar no vento de teus pés,
nem nesta poeira que afoga os dedos.
Mas viverei todas as vidas do mundo em meu corpo,
até minha morte, 
esta será a mais viva de todas,
pois não terei forças para retornar à mim após experimentá-la.